Eu estava tranquilamente assistindo a uma série da Netflix, quando recebi um telefonema do proprietário do apartamento. Ele tinha recebido uma multa , referente ao ocorrido no dia da confusão do caso do pintor. O proprietário ficou muito nervoso e pagou a multa. Daí ficou nos cobrando feito um louco e então resolvemos ressarci-lo logo. De chatice estávamos até as tampas.
Pensei que o “caso do pintor” estivesse mais do que encerrado! Mas não!
Acusaram-nos de omissos, dizendo que sabíamos que o pintor era dependente químico e mesmo assim o contratamos ; por demorarmos mais de uma hora para levar a chave solicitada e por não termos comparecido ao prédio, no dia seguinte aos fatos .
Quando li, não acreditei em tamanha desfaçatez. Que absurdo! Fiquei com ódio mortal, quando soube das razões alegadas. Só falsidade!
Tem cabimento mentirem assim, na cara dura? E eu lá, tentando tirar aquele carro lesado da garagem? Conversando com o pintor, que estava no hospital, e o zelador Beto ao meu lado, bisbilhotando a conversa? Que descaramento! Que mau-caratismo e nem sei lá mais o quê!
Esses sentimentos ficaram me corroendo. Eu só pensava nesse assunto. Fiquei obcecada !Contratei uma advogada para pequenas causas .
Ela nos defendeu muito bem, citando, a cada acusação, os fatos verdadeiros.
As mentiras tinham sido construídas sobre as verdades. Por isso fica fácil acreditar nesse tipo de mentira: a estrutura verbal e lógica é de uma verdade. Acho que nosso cérebro assimila estas estruturas e passa a acreditar nelas.
Marcaram a audiência! Amei ! Estava ansiosa para participar . Na audiência estavam a advogada da síndica, nós e o zelador Beto, como testemunha.
O juiz perguntou:
— O senhor conhece esta senhora?
— Sim!
— Esteve com ela no prédio?
–Sim, e eu ainda falei para a d. Renata: — D. Renata, por que a senhora contratou esse pintor, sabendo que ele tinha problemas com drogas? Lembra que a senhora me contou?
A resposta foi essa, inacreditável ! Fiquei fisicamente inabilitada, tal a indignação! Minha advogada me cutucou, para que eu não me descontrolasse. Fiquei muda!
A audiência prosseguiu, com aquelas palavras jurídicas explicando os fatos ocorridos . Quando terminou, todos saímos da sala e ficamos esperando lá fora.
Aí fica todo mundo civilizado. A advogada da síndica veio conversar e me contou o que mais a havia impressionado foi o fato da minha neta , de 4 anos, ter ficado, um tempão, sentada na cadeirinha, participando de todo absurdo! É, “os brutos também amam” …
Mas a história não caminha do jeito que a gente espera. O resultado pode ter sido justo, mas não pelas razões nas quais eu acreditava. Talvez tudo não passe de uma questão de interpretação e escolha.
A primeira consideração feita foi a importância de não termos sido notificados antes de ter que pagar a multa e ninguém pode ser punido antes de ser ouvido. Depois, ninguém pode ser considerado culpado por contratar um dependente químico, que sofra um surto psicótico durante o trabalho. É impossível prever quando acontecerá uma crise. E, além do mais , não poríamos em risco nossa integridade física ou patrimônio. Resumindo, não há culpa num acontecimento que se mostra impossível de ser evitado.
Quanto aos danos morais, os aborrecimentos foram considerados contratempos normais do dia a dia. Dano moral se caracteriza por dor intensa, elevada vergonha ou injúria moral , e por estas a coisas nós, na verdade, não tínhamos passado. Só faltava!
Depois de julgado o processo e tomarmos conhecimento da sentença, favorável a nós, saímos da sala e fomos pegar o carro . Tomamos um café horrível na padaria lá de baixo e nos despedimos da advogada, com muito agradecimentos.
Eu estava feliz, mas não tanto como imaginava. Inexplicavelmente senti uma certa frustração. Toda a excitação da história, do processo e da audiência tinha acabado, e eu estava me despedindo de personagens incríveis: do zelador Beto, da advogada da síndica , do proprietário do apartamento e , principalmente, do ” pintor marcado para morrer”!
Palácio da Justiça sede do Tribunal de Justiça de São Paulo