
Olyveira Daemon
É isso o que ele pergunta, logo que nos encontramos na lanchonete do centro da cidade. Ele e eu, dois desempregados desanimados, contando os centavos pra ter certeza de que não faltará dinheiro na hora de pagar o café, eu meio chateado, ele bastante irritado:
“Vejo os ônibus lotados, os elevadores lotados, o corre-corre nos bancos e nos escritórios e tudo isso me dá muita preguiça. Muita raiva.”
Eu, quieto.
“Por que as pessoas têm que trabalhar? Não. Eu não enlouqueci, não. Pensa bem. Por que as pessoas têm que acordar cedo, se deslocar até o emprego, passar horas e horas trabalhando (geralmente fazendo algo de que não gostam), voltar pra casa no final da tarde, às vezes só à noite, e no dia seguinte começar tudo de novo? Isso é loucura.”
Eu, quieto.
“Questão antiga, na minha cabeça. Você sabe. Quando eu tinha treze anos eu já não entendia por que as pessoas têm que trabalhar. Pensando bem, quando eu tinha treze anos eu não entendia muita coisa. Mas, por que as pessoas têm que trabalhar?, essa era de longe minha maior e mais séria questão existencial. Nessa época eu já tinha certeza de que a ociosidade é um direito de todos.”
Eu, quieto.
“Ociosidade pra ficar com os amigos e a família. Ociosidade pra ouvir música, ler um livro, ir ao cinema ou ao teatro. Ociosidade pra praticar um esporte, ou muitos. Ociosidade pra ficar deitado na varanda, observando o desenho das nuvens. Com toda a nossa tecnologia, não dá pra deixar as máquinas fazerem o trabalho chato e repetitivo?”
Eu, quieto.
De repente ele também fica mudo. Ninguém fala nada, e assim terminamos a primeira e única xícara de café da manhã.
“É, a situação tá braba”, eu comento, folheando os classificados.
“Ô se tá!”
“Olha só o que estão pedindo aqui: inglês, francês, alemão, especialização no exterior, pós-graduação, mestrado, doutorado… Desse jeito estamos ferrados.”
“Só nós dois? A gente e o povo brasileiro! Desse jeito estamos todos ferrados.”
“O jeito é mudar o currículo.”
“Mudar o currículo?”
“É, ora! Por exemplo, em vez de operador de xérox o cara tem que pôr especialista em marketing impresso.
“É, melhorou.”
“Em vez de faxineiro, que tal supervisor geral de bem-estar, higiene e saúde?”
“Muito melhor! E o porteiro é o quê?”
“Oficial coordenador de movimentação interna.”
“O vigia?”
“Oficial coordenador de movimentação noturna.”
“Já peguei. O motorista de ônibus fica sendo o distribuidor de recursos humanos.”
“E o motorista de táxi fica sendo o distribuidor de recursos humanos VIP.”
E a lista continua:
Distribuidor interno de recursos humanos (ascensorista).
Diretora de fluxos e saneamento de áreas (a tia que limpa o
banheiro).
Especialista em logística de energia combustível (frentista).
Auxiliar de serviços de engenharia civil (peão de obra).
Segundo auxiliar de serviços de engenharia civil (o pobre coitado que ajuda o peão).
Especialista em logística de documentos (office-boy).
Especialista avançado em logística de documentos (motoboy).
Consultor de assuntos gerais e não específicos (vidente).
Técnico de marketing direcionado (distribuidor de santinho na esquina).
Especialista em logística de alimentos (garçom).
Coordenador de fluxo de artigos esportivos (gandula).
Distribuidor de produtos alternativos de alta rotatividade (camelô).
Técnico saneador de vias públicas (gari).
Nós dois damos muita risada. Ninguém na lanchonete está entendendo nada. Eles olham pra gente e pensam: “Quem são esses malucos?”
Então o riso vai diminuindo, diminuindo, diminuindo. Até que pára de vez.
Fecho o jornal e, sem nada pra fazer, fico quieto, olhando a xícara que continua na minha frente, vazia, vazia. Ele, também desanimado, brinca com um palito de dente.
Uma mosca pousa na borda da xícara e fica me observando um tempão. Que será que ela está pensando? Que será que passa pela cabeça de uma mosca quando ela vê uma pessoa? Se ela pudesse falar, que será que ela diria pra mim neste exato momento?
“Pô, por que é que as pessoas têm que trabalhar?!”
A pergunta da mosca me assusta.
Eu levo dois segundos para acordar e perceber que quem perguntou foi ele, não a mosca.
“Vamos, fala pra mim. Por que é que as pessoas têm que trabalhar?!”
Ai, ai, aí vamos nós outra vez.
