É impressionante como certos assuntos , tão corriqueiros , que aparecem na vida da gente, podem se transformar em um evento incrível, com um monte de gente importante e inteligente envolvido nele.

Simplesmente, eu estava na casa da minha mãe , xereteando uma velha caixa cheia de cartas antigas, quando uma delas me chamou atenção. Eu achei que aquilo era um assunto que poderia ser interessante. Era uma carta do meu avô, para minha avó, escrita no dia 23 de maio de 1932.

Fiquei interessadíssima! Que data para São Paulo!

A história começa com meu avô, às 4 horas da tarde ,pegando um bonde , que iria levá-lo de seu escritório, na R. Florêncio de Abreu à sua casa, na Av. dos Eucaliptos .

O trajeto era pelo centro da cidade. Ele estava apreensivo porque havia uma aglomeração na Praça do Patriarca que impedia a passagem dos bondes da Vila Mariana. Então, ele foi andando pela Líbero Badaró e José Bonifácio até a Praça da Sé, onde tomou um “camarão”, rumo à sua casa.

Aí ,ele começa a escrever uma carta contando o que ele está vendo e vivenciando. Neste momento, percebi que essa carta podia ser um documento , e pensei o que fazer com ela. Resolvi restaurá-la. Encontrei uma restauradora espetacular, D. Lucy, uma senhora italiana, finíssima.

Ela restaurou a carta, lindamente, e quando ficou pronta, ela me disse:” Renata, não dê a carta para qualquer pessoa. Escolha alguém que realmente queira e dê valor a ela.”

Eu tinha pensado em dar a carta para um museu ou para um grupo do MMDC, mas aceitei o palpite da d. Lucy, e resolvi guardá-la, até encontrar a pessoa certa que pudesse aceitá-la.

Logo encontrei a professora Ana Maria , coordenadora do Curso de História de São Paulo, do CIEE. Vi que ali estava a pessoa certa para receber o documento, já que numa das aulas deste curso , o assunto foi sobre a Revolução de 32. Quando a aula acabou, fui conversar com a professora Ana Maria, e levei a carta, que fez o maior sucesso! Quando emprestei a ela, perguntou: “Esta carta tem continuação? “ Meu Deus, historiador sempre acha umas coisinhas… Isso porque a carta começa com meu avô saindo do escritório, na Florêncio de Abreu e termina quando ele, depois de jantar, sai para voltar ao centro, e ela logo soube que tinha mais assuntos.

A continuação da carta, que tem as perguntas e relatos do cotidiano. São perguntas do tipo ” tomou o remédio prescrito pelo Dr. Margarido?”” Disseram-me que a pomada nacional é muito eficaz.”. Esta parte contextualiza a história.

Antes de falar com a professora Ana Maria , eu tinha achado esses assuntos de remédios e tratamentos uma tal besteirada, que nem dei atenção .Mas depois do comentário da professora , eu resolvi arrumar a continuação da carta e fui procurar d. Lucy. Infelizmente ela não trabalha mais, porém indicou uma restauradora super competente e um doce,Luísa.

Foi aí é que meu interesse aflorou. Percebi que era muito importante esta carta ter sido escrita dia 23 de maio de 1932, quando protestos contra o Governo do Getúlio aconteciam em diversos pontos do centro de São Paulo. Meu avô estava de um lado do Anhangabaú. Do outro lado da cidade, na esquina da Barão de Itapetininga com a Praça da República, acontecia o trágico assassinato dos quatro jovens manifestantes: Miragaia, Martins, Drauzio e Camargo,o MMDC, que batizou o movimento de mobilização dos civis para a guerra.

Foi também neste dia, que alguns estudantes invadiram a Rádio Record, na Praça da República e exigiram a leitura de um manifesto. A influência do rádio foi fenomenal, tendo sido usado , pela primeira vez , como meio de mobilização de massa no Brasil.

A essas alturas , eu já estava achando tudo muito exagerado. Será que essa carta é tão importante? Afinal, é uma carta de um marido para sua mulher! Mas foi aí que eu vi uma coisa : era uma carta escrita por um homem culto, num dia crucial para a história de São Paulo, e é uma descrição e uma reflexão sobre os acontecimentos desse dia.

A restauradora Luísa sugeriu que fizéssemos um estudo mais aprofundado sobre meu avô, e poderíamos até fazer um livrinho com capa de couro!

Agradeci o interesse e gentileza, mas declinei. Acho que essa história está ficando muito grande!!!

Mas pensando bem, quantas vezes na vida a gente consegue transformar algo simples e comum num fato extraordinário!