A garoa de São Paulo, fininha e gelada, estava molhando meus ralos cabelos e escorria pela minha careca. Como é chato envelhecer!

 Andei bem rápido para entrar logo no Paribar e me aquecer com um “rabo de galo”e com a presença de companheiros de bar.

Eu já tinha bebido ( estava meio “borracho”) , com a mente turvada, assim como a turma encostada no balcão melado de cerveja.

Olhei para todos torcendo para que não me vissem, ou não me reconhecessem. Mas os olhares foram de desaprovação, de horror, de  repulsa.

A mesa, com uma toalha limpa, estava vazia. Pedi uma cerveja e uma coxinha, daquelas bem recheadas. Segurei a cabeça, mas logo depois, cruzei os braços em cima da mesa  e minha cabeça desabou. Num misto de névoa etílica, pesadelo e pensamentos torpes,  figuras e cenários dançavam  no  meu lobo frontal, que não conseguia controlar minhas percepções.

E não é  que, naquela estante de madeira, daquelas que as pessoas penduram jornais e avisos  de bairro, estava um exemplar  da Gazeta Única, úmido e amassado. Não acreditei, será que os fatos nunca saem  da história? Ficam martelando na  minha cabeça…A história não está em tempos atrás, ela está  nesse momento atual. Ela vive agora.

Será por isso que toda essa nuvem, no meu cérebro, nunca vai embora?

Mal consigo organizar fatos ,emoções, pensamentos. Não consigo nem tento mais. Tenho certeza que meus neurônios , numa hora qualquer, conseguirão unir todos os fatos , fazendo sentido para mim, do absurdo pelo qual eu passei.

Não faz muito tempo, mas o suficiente para ter minha vida arruinada. E eu que  nem sequer me lembro do ocorrido?

O que aconteceu?

Quem era a moça encontrada no meu carro, largada e ensanguentada, numa posição macabra? Não se mexia e sua boca, já arroxeada, mostrava os dentes perfeitos. Isso me chamou a atenção, afinal eu era dentista e sabia apreciar o trabalho de outros profissionais. Por que  de outros profissionais, e não meu?

Tudo está muito confuso, não sei  se é lembrança ou histórias incutidas na minha cabeça, por notícias de jornais ou mexerico de vizinhos. Esses não perdoam. Se divertem com a desgraça alheia.

Dúvida, dúvidas.

Mente descabelada. Dúvidas, lembranças falsas e  verdadeiras, que deixam minha boca com gosto amargo do Campari, que eu bebo como água.

O que o corpo dessa moça está fazendo na minha garagem? Eu tenho alguma coisa a ver com isso? De quem  são esses lindos dentes nesse corpo inerte?

A única coisa que me liga a isso é a obsessão que tenho  por dentes perolados.

Faço um trabalho extraordinário, meus colegas sempre me indicam para fazer restaurações e implantes. Sou ótimo nesse quesito. É verdade que algumas vezes destruí trabalhos, não sei porquê. Se inveja do paciente, ou de não deixar a perfeição existir. Quebrei tudo,  toda a porcelana, o molde, tudo . Louco, não?

Por sorte a maioria desses clientes não deram queixa na Policia. Os poucos que foram lá se deram mal. Meu testemunho era contundente: Isso não aconteceu!

Mas essa moça, a do meu carro, é diferente. É linda e seus dentes impecáveis!

Não consegui destruir seus dentes, eram perfeitos demais.

Mais fácil acabar com a dona deles.

Agora me lembro do momento sublime.

Nunca esquecerei.