Última segunda-feira de agosto. Um dia após o encerramento das Olimpíadas de Atenas. Os jornais falam das medalhas, do nosso maratonista Vanderlei que liderava a prova e foi agredido por um maluco irlandês. Mortes de mais moradores de rua que parece viraram coisa comum também no interior de São Paulo. Mega protesto em Nova York contra Bush… Uma pequena notícia chama minha atenção:

Professor aposentado quer ser adotado como avô. “Um professor de 80 anos que vive sozinho próximo da cidade de Tivoli, na Itália, está tentando ser adotado como avô. Giorgio Angelozzi, viúvo há 12 anos, está disposto inclusive a pagar 500 euros por mês para a família que o adotar. Ele colocou um anúncio em jornais locais e disse já ter recebido várias ligações. Morador da pequena cidade de San Polo dei Cavalieri, Angelozzi disse que já teve “solidão suficiente” e pode ser “socialmente útil” como avô para uma família que não tenha nenhum.” (O Estado de São Paulo 30/8/04) Tento imaginar quanto daria para ter meus avós de volta! Quanto dariam meus filhos para tê-los de volta? Coisas que só damos valor quando perdemos. Quanto vale sentar numa velha escrivaninha, abrir todas as gavetas, ajudar a apontar os lápis grafite, cortar pedaços de envelopes que vão ser usados para fazer contas do empório, do açougue, do padeiro que passa duas vezes por dia? Sentada diante do meu moderno computador lembro do barulho do teclado da velha Remington do vovô, as teclas pulando e batendo na fita preta e vermelha. Ficou a mania de bater no teclado com força. Um Chevrolet 51, preto reluzente, estacionado na garagem. Banco de couro, pneu faixa branca. Eram bens duradouros, as coisas tinham outro valor. O tempo passava devagar. Os almoços e jantares eram rituais sem pressa. Uma sopa sem ser de pacote. Uma couve rasgada, uma compota de goiaba, uma laranjada bem doce. O café moído em casa, o cachorro e os gatos não comiam ração.

Meu avô guardava todos os papéis de embrulhos (ainda existem embrulhos?), todos os barbantes num rolo gigantesco. Como o italiano Angelozzi, vovô passou por épocas difíceis: lutou na revolução de 24, depois na de 32, odiava Getúlio que passei a odiar sem saber muito bem por que. Nasci um mês depois daquele agosto de 54. Dizia que não se pode deixar comida no prato. Nem roer as unhas, nem falar alto com as pessoas. Com ele aprendi a falar bom dia, boa tarde, por favor e muito obrigado. A olhar cada pôr de sol como se fosse único. A dar valor para os estudos para ser alguém na vida. Ele não teve essa chance, entregava doces que a mãe viúva fazia, depois foi trabalhar como contínuo (eu não sabia o que era) numa corretora de café. Trabalhou duro, deixou filhos e netos. Morreu dormindo na rede da fazenda. Teria mais de cem anos… Meu pai também foi um avô inesquecível. Fazia mais bagunça que os netos, contava histórias, criava personagens, inventava charadas, caça ao tesouro, comprava balas, bombons, chocolates, tudo o que as mães proibiam. Adivinhava desejos de cada um. Não passa uma semana sem que um dos netos se lembre de alguma besteira que o avô estaria aprontando nesses tempos de internet. Quantos e-mails engraçados, quantos textos maravilhosos. Velho Giorgio, que você arranje muitos filhos e netos adotivos. Não pense nos euros. O afeto de um avô não tem preço . São Paulo, 2004

Texto publicado na revista “Contra Regra” do Teatro de Tábuas em 2004

Neta Mello nasceu em São Paulo em 1954 como Maria Antonieta Pereira de Almeida. Bacharel, licenciada e pós-graduada em História pela PUC-SP, trabalhou como professora de História e Atualidades. Escritora, tem cinco publicados: “Crônicas Memórias”, “Paulicéia Ignorada”, “Sem Remetente” que recebeu o 2o lugar no concurso da União Brasileira de Escritores RJ em 2010, “O silêncio faz parte da resistência” e “Eu não sabia”.

Por Neta Mello – www.blogdaneta.blogspot.com